O habeas corpus de Miguel Arraes no STF em 1964

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Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
pós-doutor pela Universidade de Boston, doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, procurador da Fazenda Nacional.

Segue o habeas corpus que visava colocar Arraes em liberdade. Reproduzo, em primeiro lugar, a petição inicial:

"Os Drs. Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Antônio de Brito Alves, brasileiros, casados, advogados inscritos na Ordem dos Advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, nas Seções da Guanabara e de Pernambuco, respectivamente, vêm, com fundamento no artigo 141, parágrafo 23, da Constituição Federal, impetrar, perante o Colendo Supremo Tribunal Federal, uma ordem de HABEAS-CORPUS em favor do dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR, brasileiro, casado, advogado, ora preso preventivamente no Quartel do Corpo de Bombeiros, na cidade do Recife, à disposição do Conselho Permanente de Justiça do Exército da 7ª Região Militar, pelos motivos que passam a expor: 1. É público e notório em todo o país que o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR exercia a função de Governador do Estado de Pernambuco, quando, no dia 31 de março de 1964, o movimento revolucionário que conduziu à Presidência da República o Exmo. Sr. Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Em virtude de haver repelido todas as propostas então apresentadas para a sua permanência à frente do Poder Executivo Estadual, com a altivez inerente ao exercício do mandato que o povo pernambucano lhe outorgara, o paciente foi deposto e preso por oficiais das Forças Armadas, no dia 1º de abril de 1964. Na mesma data, o Exmo. Sr. General Joaquim Justino Alves Bastos, então Comandante do IV Exército, comunicava ao Exmo. Sr. Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, através do ofício nº 4, ‘que, em face dos últimos acontecimentos ocorridos no país e neste Estado, o Governador Miguel Arraes de Alencar não mais se encontra à frente do Poder Executivo’. No dia seguinte ao de sua prisão, o paciente foi conduzido, em avião da FAB, para o Território de Fernando de Noronha, onde permaneceu incomunicável durante longos meses. Dali veio ele a ser transferido, mais tarde, para o Quartel da Companhia de Guardas, localizado na cidade do Recife, e, posteriormente, para o Quartel do Corpo de Bombeiros, onde ainda se encontra preso. 2. Somente no dia 21 de maio de 1964 é que o Conselho permanente de Justiça do Exército decretou a prisão preventiva do paciente, atendendo, assim, ao pedido do encarregado do IPM, instaurado em Pernambuco, com o objetivo de apurar a prática de atos subversivos ou de corrupção. No citado decreto, todas as pessoas por ele atingidas foram apontadas como infratoras do art. 2°, item III, da Lei 1802, de 5 de janeiro de 1953, a denominada Lei de Segurança do Estado. Tanto isso é verdade que, na conclusão do decreto de prisão preventiva, assim se expressa, textualmente, o Conselho Permanente de Justiça do Exército da 7ª Região Militar: ‘em face dos indícios de provas apresentados de haverem todos eles tentado mudar a ordem política e social estabelecida na Constituição Federal, por inspiração estrangeira, com infração ao item III, artigo 2°, da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social’. Com o decreto de prisão preventiva surgia, finalmente, a invocação de um motivo para a custódia do Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR, qual seja, o de haver tentado mudar, por inspiração estrangeira, a Ordem Política e Social estabelecida na Constituição, entendendo, por isso, o Conselho de Justiça Militar que o paciente infringiu o art. 2º, item III, da Lei 1.802. 3. A fim de assegurar o exercício do seu direito de ir e vir, tão ilegalmente cerceado, o paciente impetrou perante o Egrégio Superior Tribunal Militar, no dia 9 de dezembro do ano próximo findo, uma ordem de habeas-corpus, que tomou o nº 27.509, sendo relator o Exmo. Sr. Ministro José Espíndola. Aconteceu, porém, que o mais alto órgão da Justiça Castrense, na sua reunião do dia 17 do mês em curso, denegou, por seis votos contra quatro, o habeas corpus impetrado, afastando-se, assim, da orientação que adotara, uma semana antes, quando julgou o conflito negativo de jurisdição suscitado pela Auditoria da 7ª Região Militar, ocasião em que decidiu, por maioria de votos, pela incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o Dr. João Seixas Dória, ex-Governador do Estado de Sergipe, apontando, também, como infrator do art. 2º, item III, da Lei 1.802, no mesmo decreto de prisão preventiva em que figura, entre outros, o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR, datado de 21 de maio de 1964. 4. Resta, pois, ao ex-Governador de Pernambuco bater, agora, respeitosamente, às portas do Supremo Tribunal Federal, com a esperança de que o Pretório Excelso, concedendo o presente HABEAS-CORPUS, faça cessar o manifesto constrangimento ilegal que vem sofrendo, faz quase um ano. Na verdade, três são os fundamentos jurídicos que demonstram, claramente, a ilegalidade da prisão do paciente, a saber: a evidente incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o ex-Governador do Estado de Pernambuco; o divórcio flagrante entre o fundamento legal do decreto de prisão preventiva e o próprio texto da figura delituosa nele invocada e, finalmente, o gritante excesso de prazo de prisão preventiva prevista na Lei 1.802, que é, como se sabe, uma lei especial. Pretendendo, sem mais nem menos, processar e julgar o ex-Governador de Pernambuco, despreza, assim, a Justiça Militar não só a condição de civil do paciente, como também o seu direito líquido e certo de ser processado e julgado perante o foro especial que lhe é assegurado pelas normas constitucionais vigentes. Mas, o que não se pode, nem se deve esquecer, é que a Constituição Federal em vigor delimita, de maneira precisa e clara, o âmbito do foro sem violar o texto constitucional. Com efeito, a competência da Justiça Militar é constitucionalmente limitada ao processo e julgamento dos crimes militares, dos crimes contra a segurança externa ou as instituições militares. Trata-se, portanto, de competência de direito estrito, que não pode ser ampliada pelo legislador ordinário além dos exatos limites estabelecidos pela Carta Magna, no art. 108 e seu parágrafo primeiro. Se, em tempo de guerra, é possível a ampliação da competência de foro militar, tal coisa não poderá ocorrer, enquanto estiver em vigor a Carta Magna de 1946, em tempo de paz. No decurso deste, conforme preceitua o parágrafo 1º do art. 108 da Constituição Federal, à Justiça só compete processar e julgar civis, quando estes cometem crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares. Observa PONTES DE MIRANDA: ‘Caracteriza-se o art. 108, parágrafo 1º e 2º, pela amplitude que deixa à jurisdição penal militar, porém o parágrafo 1º muito mais o limita do que amplia. À Justiça Militar só se pode cometer o processo e o julgamento dos crimes contra a segurança externa, isto é, segurança das instituições e da ordem política do Brasil. Em todo o caso, ainda se lhe abre a possibilidade de processar e julgar crimes contra a segurança interna, quando atentem contra as instituições militares. Em tempo de guerra, a abrangência pode ser maior’. (…) Assinala, também, THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI: ‘ Admitiu, finalmente, a Constituição que a lei ordinária ampliasse, ainda mais, a sua compreensão estendendo a jurisdição militar aos civis em dois casos: a) em tempo de paz, em relação aos civis, nos crimes contra a segurança externa do país ou contra as instituições militares; b) em tempo de guerra, pela supremacia da lei militar em tudo quanto diz respeito à segurança interna e externado país. As Constituições de 1934 (art. 84) e 1937 (art. 111) já previam a primeira hipótese, sendo que a segunda é apenas uma aplicação mais genérica do mesmo princípio que possam atingir a sua soberania, unificando também a jurisprudência ia a competência da Justiça Militar. A competência ratione materiae é aqui absoluta." (…) Reafirmando o ensinamento seguro da Doutrina, o Supremo Tribunal Federal já decidiu: ‘O legislador ordinário só pode sujeitar civis a jurisdição militar, em tempo de paz nos crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares’ (Súmula n° 298). Ora, ninguém atribuiu, no inquérito ou fora dele, ao paciente, civil que é, a prática de crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares, os dois únicos casos em que, face à Constituição Federal em vigor, a Justiça Militar tem competência para processar julgar civis, em tempo de paz. O que se atribuiu ao paciente, embora de maneira apressada e injusta, é a prática da infração prevista no art. 2°, item III, da lei 1.802, figura delituosa esta que trata, precisamente, dos atentados cometidos contra a segurança interna do país. Se, porventura tudo isso não bastasse para excluir, na espécie, a competência da Justiça Militar, outro fundamento jurídico relevante ainda existe, no caso sub judice. Trata-se do instituto da competência por prerrogativa de função. Muito embora as acusações feitas na Justiça Militar sejam de todo improcedentes e injustas, o que será irretorquivelmente provado, se preciso for, no Juízo competente, o fato inegável, caso fossem elas verdadeiras – admita-se a hipótese apenas para argumentar – é que o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR teria cometido os supostos crimes no exercício na função de Governador do Estado de Pernambuco, no desempenho do mandato que o povo pernambucano lhe outorgou. Conseqüentemente, os únicos órgãos competentes para tomar conhecimento das supostas infrações são a Assembléia Legislativa e o Tribunal de Justiça de Pernambuco. Nem o fato de haver sido deposto acarretou, para o paciente, a perda do seu direito de ser processado e julgado perante o foro especial. Assim que o Pretório Excelso já se pronunciou com a clareza e a segurança de sempre: ‘Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício (Súmula nº 394). Ora, a atual Constituição do Estado de Pernambuco, no seu art. 28, estabelece: ‘ É da competência exclusiva da Assembléia Legislativa: IV – declarar, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, a procedência ou improcedência da acusação contra o Governador e contra os Secretários de Estado, nos crimes conexos aos do Governador". Mais adiante, dispõe a citada Constituição: ‘Art. 69 – O Governador do Estado será processado e julgado nos crimes comuns pelo Tribunal de Justiça e, nos de responsabilidade, pela Assembléia Legislativa, na forma estabelecida em seu Regimento’. Nessas condições, é de uma clareza meridiana que o Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR só pode ser processado e julgado na conformidade do que dispõe, imperativamente, o art. 69 da Constituição do Estado de Pernambuco, dispositivo este que reproduz, em essência, o obrigatório modele federal, ou seja, o art. 88 da vigente Carta Magna. O entendimento pacífico de que o Governador de Estado goza de foro especial por prerrogativa de função tem sido, aliás, proclamado, alto e bom som, nesses últimos tempos, pelas mais altas Cortes de Justiça do país, particularmente pelo Supremo Tribunal Federal. Ao conceder, no dia 12 de agosto de 1964, o habeas-corpus nº 26.952, sendo paciente o Dr. João Seixas Dória, ex-Governador do Estado de Sergipe, e, também, indiciado como incurso no art. 2º item III, da Lei 1.802, do qual foi relator o Exmo. Sr. Ministro Ribeiro da Costa, o próprio Superior Tribunal Militar decidiu: ‘ EMENTA – Prisão preventiva decretada por Conselho incompetente. Tendo sido o paciente Governador do Estado na época dos fatos que lhe são atribuídos, deve o mesmo ser processado e julgado pela Assembléia Legislativa do seu Estado, na forma do art. 75 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1.950. Concedida a ordem’. Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal, através de decisões que têm, hoje, um lugar de destaque na historia da Justiça Brasileira, firmou a incompetência do foro militar para processar e julgar ex-Governadores de Estado, tidos, também, pela Justiça Castrense como infratores da Lei 1.802, quando concedeu, no ano próximo findo, os habeas-corpus impetrados em favor dos Drs. Plínio Coelho, Parsifal Barroso e Mauro Borges, dos Estados do Amazonas, Ceará e Goiás, respectivamente. 6. É insofismável, portanto, diante do entendimento harmônico da Doutrina e da Jurisprudência, que a Justiça Militar é manifestamente incompetente para processar e julgar o ex-Governador do Estado de Pernambuco, sendo de todo insubsistente, por isso mesmo, o decreto de prisão preventiva, em virtude do qual o paciente permanece ilegalmente preso. Todavia, restando, ainda, de quebra, outros motivos que demonstram a gritante ilegalidade da prisão do Governador deposto de Pernambuco, não queremos perder o ensejo de os apontar aqui, embora de maneira sucinta. Como vimos, o Conselho Permanente de Justiça do Exército da 7ª Região Militar, no seu decreto de prisão preventiva, empregou, textualmente, a expressão ‘por inspiração estrangeira’, para caracterizar a entidade criminal prevista no art. 2°, item III, da Lei 1.802. Com o emprego dessa expressão vazia, pretendeu-se estranhamente, configurar a infração definida no citado texto legal. Ora, o que está escrito, no art. 2°, item III, da Lei 1.802, de modo inequívoco, é de todo inconciliável com a expressão usada no decreto de prisão preventiva. Na realidade, a Lei 1.802, em nenhum de seus artigos, fala em ‘inspiração estrangeira’. Fala, isto sim, em ajuda ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização estrangeira ou de caráter internacional. Nem o termo inspiração é sinônimo de ajuda ou subsídio nem intérprete algum será capaz de encontrá-lo no espírito do art. 2°, item III, da Lei 1802. Por outro lado, é intuitivo que a palavra inspiração vive e se esgota no plano puramente subjetivo, enquanto que os termos ajuda e subsídio têm, no artigo invocado, um sentido material, concreto, objetivo. Sem a prova real da militante ajuda ou do efetivo subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, ninguém pode ser apontado, seriamente, como infrator do art. 2°, item III, da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953. Caso fosse possível a redução desse conflito entre o fundamento do decreto de prisão preventiva e o próprio texto legal nele invocado, ainda assim persistiria, sob outro ângulo, a manifesta ilegalidade da prisão do paciente, desde que o mesmo se acha preso por muito mais tempo do que determina o art. 43, parágrafo 2°, da Lei de Segurança do Estado. É demasiadamente sabido que, na citada lei, o prazo máximo para a duração da prisão preventiva é de sessenta (60) dias, sendo dispensável citar aqui as reiteradas decisões dos nossos Tribunais, concedendo habeas corpus a presos políticos, por inobservância daquele prazo peremptório, improrrogável, fatal. Se, na legislação comum, a revogação da prisão preventiva é uma faculdade conferida ao juiz, na Lei de Segurança do Estado o legislador a impõe, conforme se vê, claramente, da expressão ‘ a medida será revogada’, por ele empregada no art. 43, parágrafo. 2°, da Lei 1.802. Ora, o paciente se encontra preso desde o dia 1° de abril de 1964, tendo sido a sua prisão preventiva decretada a 21 de maio do mesmo ano, sob a alegação inconsistente de que ele teria infringido o art. 2°, item III, da Lei 1802. São decorridos, portanto, mais de 11 (onze) meses da data de sua prisão, sem que, até hoje, tenha sido sequer denunciado pelo Promotor Público! Em resumo: quer pela incompetência manifesta da Justiça Militar; quer pela discordância manifesta flagrante entre o fundamento do decreto de prisão preventiva e o texto do art. 2°, item III, da Lei 1.802; quer, finalmente, pelo abusivo excesso de prazo, a prisão preventiva do Dr. MIGUEL ARRAES DE ALENCAR não encontra apoio algum em qualquer diploma legal vigente no país, sendo remediável a ilegalidade por habeas corpus. Ante o exposto e provado, os impetrantes pedem ao Supremo Tribunal Federal a concessão do presente habeas corpus, expedindo-se, por via telegráfica, em favor do paciente, alvará de soltura, o qual deverá ser encaminhado ao Exmo. Sr. Dr. Auditor da 7ª Região Militar."

O requerimento de habeas corpus centrava-se em três pontos básicos, de modo a evidenciar a ilegalidade e a imprestabilidade da prisão do paciente. Denunciava-se a incompetência flagrante da Justiça Militar. Apontava-se a distância entre o fundamento legal justificativo da prisão preventiva e a capitulação legal utilizada pelas autoridades. Comprovava-se o excesso de prazo. Nos autos do processo aqui estudado há certidão emitida por Francisco Dantas de Morais, escrivão da Auditoria de Guerra da 7ª Região Militar, relativa a cópia da informação do Ministro José Espíndola, pertinente ao habeas corpus que havia sido impetrado em favor de Miguel Arraes na justiça militar. Afirmava-se, entre outros, que Arraes era elemento nitidamente comunista, e que fora visitado assiduamente pela comunista russa Raissa Godman em 1949. Teria também participado com outros comunistas de um comitê de ajuda da imprensa popular, no ano de 1950. Em 1952 Arraes teria assinado com outros vermelhos manifesto para convocação de um congresso regional para defesa do petróleo. Em 1961 teria promovido campanha paga pelo governo do Pernambuco, mantendo ligações com comunistas. Em 1962 Arraes estivera em Natal, convidado por Djalma Maranhão, participando de comício contra o ato adicional. Em 1964 teria comparecido em trajes esportivos nos municípios de Moreno e de Vitória, aconselhando camponeses a marcharem em Recife. Nos termos da referida certidão, seriam essas as acusações gravíssimas que pesavam contra Miguel Arraes.

Nos autos há em seguida outra certidão encaminhada pela Auditoria da 7ª Região Militar, relativa às acusações feitas contra João Seixas Dória, implicado na prática de atos subversivos contrários ao regime democrático, adotado em nossa Constituição. O processo ainda está instruído com vários excertos de jornal, com referência ao governador Seixas Dória. Juntou-se também notícia referente à negativa de habeas corpus para Arraes, por parte do Tribunal Militar, por diferença de dois votos.

No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Evandro Lins e Silva foi o relator do processo. Em 23 de março de 1965 assinou o Ofício nº 87/R solicitando informações urgentes ao Presidente do Conselho Permanente de Justiça do Exército na VII Região Militar, em Recife. Um telegrama seguia como resposta e informava-se que Miguel Arraes de Alencar figura com cabeça da subversão na área nordeste sendo apontado no inquérito como ativista da linha comunista orientação chinesa.

A questão foi discutida na sessão do Tribunal Pleno em 19 de abril de 1965. O relatório de Evandro Lins é extenso e minudente, e em especial se reporta à petição de Sobral Pinto, que reproduz em seus contornos principais. Abre o voto propriamente dito com reprodução da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, cujo verbete segue: ‘Cometido o crime durante exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação do exercício funcional’. A linha de raciocínio acompanhava esse comando. Levando-se em conta que Arraes era governador de Estado à época dos fatos imputados como criminosos, a competência para julgá-lo seria do estado do Pernambuco, e não da Justiça Militar, o que justificaria a confecção e expedição da ordem requerida.

Cautelosamente, Evandro Lins elencou vários julgados no sentido da tese que esposava. Fez também menção ao leading case, afeto ao ex-governador de Goiás, Mauro Borges. O caso de Mário Borges fora apreciado no habeas corpus nº 41.296, relatado pelo Ministro Gonçalves de Oliveira. Sobral Pinto e José Crispim Borges advogaram em favor de Mário Borges. Segue a ementa do referido julgado:

"Impeachment. Caso do Governador Mauro Borges, de Goiás. Deferimento de liminar em habeas corpus preventivo por despacho do Ministro relator, dada a urgência da medida. Os Governadores dos Estados, nos crimes de responsabilidade, ficam sujeitos ao processo de impeachment, nos termos da Constituição do Estado, respeitado o modelo da Constituição Federal. Os Governadores respondem criminalmente perante o Tribunal de Justiça, depois de julgada procedente a acusação pela Assembléia Legislativa. Nos crimes comuns, a que se refere a Constituição, se incluem todos e quaisquer delitos da jurisdição penal ordinária ou da jurisdição militar. Os crimes militares, a que os civis respondem, na Justiça Militar, são os previstos no art. 108 da Constituição Federal. Os crimes de responsabilidade são os previstos no art. 89 da Constituição Federal definidos na Lei 1.079, de 1950. Concessão da ordem para que o Governador somente seja processado, após julgada procedente a acusação, pela Assembléia Legislativa".

Retorno a Miguel Arraes de Alencar. Evandro Lins anunciou em seu voto, com base em interpretação direta do texto constitucional, e das demais normas aplicáveis ao caso, que a questão era prioritariamente de competência. Assim,

"Quanto aos Governadores de Estado, a competência para seu julgamento, tanto no que diz respeito aos crimes de responsabilidade como em relação aos crimes comuns, ressalta claramente do sistema político que nos rege e do que dispõem expressamente a Constituição, a Lei nº 1.079, de 19.4.50, e o Código de Processo Penal. É da essência da Federação a concessão de imunidades aos parlamentares e de foro privativo aos magistrados e ao chefe do poder executivo. A regra aplica-se tanto ao campo federal como na esfera estadual."

Com referência ao procedimento para processamento dos crimes de responsabilidade, Evandro Lins e Silva firmava a competência do Tribunal do Estado do Pernambuco para julgamento de Miguel Arraes. Não haveria, no caso, como se distinguir o crime comum do crime militar. No fecho, Evandro concedeu a ordem impetrada para declarar incompetente a Justiça Militar e competente o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco para processar e julgar o paciente.

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