Histórico do conflito em torno da reserva Raposa Serra do Sol

Fonte: Vi o mundo, 23/05/2008.

"Essa é uma idéia que oscila entre a tolice e a paranóia"

Atualizado em 22 de maio de 2008 às 22:01 | Publicado em 22 de maio de 2008 às 21:57

Uma entrevista com o antropólogo Fernando Vianna sobre a polêmica em torno da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima:

Como vc vê a disputa judicial?

Olha, procurando ter a real medida do que significa essa disputa. Por um lado, ela está longe de ser apenas judicial; por outro, naquilo que tem de judicial, está por demais desgastada. O processo de demarcação da Raposa/Serra do Sol foi demoradíssimo e conturbadíssimo, mas está concluído. Sua conclusão, conforme o procedimento pertinente, foi um decreto de confirmação oficial, a chamada homologação, de abril de 2005.

Com a homologação, também conforme manda o figurino, veio a ordem de retirada dos ocupantes não-índios. O que há agora é uma reabertura de discussão no STF, motivada por ação que quer evitar essa retirada dos não-índios – retirada sobretudo, entenda-se, de um grupo de seis ou sete produtores de arroz que se recusam de todo modo a sair dali.

Tem gente que olha para isso, não conhece a história que há por trás, e diz: “está certo; é um estado da federação defendendo o seu setor produtivo”. Tem outros que olham, também ignoram a história regional, e pensam: “é legítimo; a Justiça está aí para acolher as posições em litígio e decidir o que for melhor para a sociedade; não apenas os índios têm direitos, mas os produtores também”. É legítimo que os arrozeiros e o governo que os apóia briguem na Justiça? Sem dúvida. Ocorre que, há vários anos, eles não têm feito senão brigar, de maneira às vezes demasiado literal, e não parecem ser o tipo de pessoa que se conforma em perder…

Por que você diz isso?

Porque considero um duplo pano-de-fundo. Primeiro, o fundo histórico, jurídico, moral e ético do que é demarcar terras indígenas em nosso país, e o tanto de disputa que já está aí implícito. Demarcar não é algo que se faça assim de qualquer jeito, para “dar terra para os índios”. É um longo e detalhado processo definido por lei. Nas esferas judiciais e políticas apropriadas, ao longo pelo menos das duas últimas décadas, os setores contrários à demarcação da Raposa já promoveram a disputa que se admite num Estado de Direito, e, apesar da enorme pressão de que são capazes, perderam.

Perderam porque a área é incontestavelmente indígena, e o ordenamento jurídico brasileiro ampara os direitos territoriais indígenas. A esta altura, então, a retirada dos ocupantes não-índios era para ser um procedimento pacífico: um mero cumprimento do que está previsto no Decreto de Homologação. Mas o fato é que, antes e depois da homologação, o poder local de Roraima – esse estado criado em 1988 e que até hoje vive de absorver verbas federais e de oferecer incentivos fiscais – partiu para uma briga muito mais literal do que a judicial e política.

Estou falando – e este é o segundo pano-de-fundo da questão – de bloqueio de estradas, de queima de construções, de invasões de entidades, de atentados, seqüestros, tiroteios e assassinatos contra os defensores da demarcação da Raposa, algo que se verifica, em reiteradas ondas de violência, desde o início dessa história. Eu diria, enfim, que isso que hoje pode parecer uma singela “disputa judicial” no Supremo entre partes em ligítio é a repetição de um esperneio de quem não admite perder e, quando perde, recorre à violência – como já recorreu tantas vezes.

Como foi o processo de demarcação da Raposa/Serra do Sol?

Difícil, como eu já disse. O reconhecimento de que a Raposa/Serra do Sol é área indígena começou em 1917, com um ato legislativo do governo do estado do Amazonas. A luta indígena pela efetiva demarcação remonta à década de 1970. Já o processo de demarcação nos moldes atuais, pós-Constituição de 1988, arrastou-se de 1992 a 2005. Como todos os processos de demarcação de terra indígena no Brasil, ele encontra seu lastro na Constituição Federal, e obedece a um complexo procedimento administrativo, bastante detalhado e minuciosamente regulamentado pelo Decreto 1775 e pela Portaria 14 do Ministério da Justiça, ambos de 1996.

Tal procedimento, importa destacar, prevê que todos os que se sintam prejudicados (particulares, estados, municípios) apresentem oficialmente seus argumentos, para que o Ministro da Justiça decida se fazem jus a indenizações, se a demarcação deve ser revista nessa ou naquela área ou mesmo se merece ser anulada. É o chamado direito ao contraditório.

Esse direito já foi exercido à exaustão no caso da Raposa/Serra do Sol, conforme os ritos estipulados no decreto 1.775 e conforme, também, os caminhos judiciais disponíveis. Falar do processo de demarcação da Raposa é tratar de uma história cujo tramo final começa em 1996, quando o então ministro da Justiça Nelson Jobim emite um Despacho em que, levando em conta o direito ao contraditório, encaminha a demarcação da Raposa de uma forma que acabará não saindo do papel. Dois anos depois, o ministro da Justiça da vez, Renan Calheiros, refaz o procedimento de seu antecessor e ordena a demarcação física segundo os estudos que haviam sido, de fato, concluídos em 1993.

De lá para cá, se a gente fosse recapitular as idas e vindas desse caso nos três poderes da República – no Executivo, entre Ministério da Justiça, Casa Civil e outros órgãos; no Judiciário, entre TRF da 1ª Região, STJ e o próprio STF; e até no Legislativo Federal, que, embora não tivesse porque analisar o assunto, acabou entrando no jogo – rechearíamos uns tantos parágrafos.

Foram anos de imbróglio administrativo, político e judicial, que atravessaram mandatos presidenciais, gestões de ministros da Justiça, e terminaram com a já tardia homologação de abril de 2005. Quer dizer: depois de várias iniciativas da Funai no sentido de estudar detalhadamente a área (entre 1977 e 1993), depois de mais de 40 contestações à demarcação terem sido formalmente produzidas e encaminhadas ao Ministério da Justiça em 1996, depois de vários titulares da pasta terem avaliado o caso (entre 1993 e 2005), depois de deputados e senadores terem discutido a matéria (sobretudo entre 2003 e 2004), depois de uma sucessão de ações e decisões judiciais que culminaram com o STF “limpando a área” das querelas judiciais em abril de 2005, depois de tudo isso, foi que veio o decreto presidencial de homologação, de 15 de abril de 2005. Não custa lembrar que esse decreto excluiu da terra indígena algumas áreas que nela estavam presentes, conforme o desenho demarcatório definido em 1993 e aprovado em 1998.

O que diz exatamente a Constituição sobre as terras dos índios?

A Constituição de 1988 reflete o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de que os índios sofreram um significativo esbulho territorial ao longo do processo de colonização. Seu artigo 231 afirma que os índios são detentores de direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. A noção de “direitos originários” implica a assunção por parte do Estado de que os índios, por serem quem são – habitantes destas plagas desde antes da formação do Brasil –, têm direitos territoriais que antecedem a própria constituição do Estado.

E um corolário disso é que as terras indígenas existem independentemente de o Estado reconhecê-las, sendo obrigação dele, entretanto, reconhecê-las, demarcá-las, protegê-las. O texto constitucional também deixa claro que essas terras que os índios “tradicionalmente ocupam” devem ser entendidas em termos daquilo que é necessário para sua reprodução física e cultural.

Daí que sejam descabidos raciocínios ancorados na mera relação entre extensão territorial e densidade populacional indígena, para pretender estipular a quantidade de terra que deve ser reconhecida como indígena. Aos índios se reconhece a extensão territorial que, com base em processos sociais específicos, lhes é imprescindível para sua reprodução. Fatores econômicos e/ou ecológicos - como a prática da agricultura de coivara, rotativa –, e também sócio-políticos – como frequëntes fissões e a conseqüente multiplicação de grupos locais fundados no parentesco – fazem com que tal território seja mais amplo do que se pode supor numa primeira abordagem da questão. Importante frisar que as terras indígenas são propriedade da União; o que se reconhece aos índios é a posse e o usufruto exclusivo sobre elas.

É possível obter uma solução que atenda aos rizicultores?

Aqui, a primeira coisa a ter em mente é que os títulos de que dispõem esses rizicultores são precários, como já afirmou publicamente o ministro Tarso Genro. Eles adquiriram as terras que ora ocupam no início dos anos 1990, num momento em que o processo de demarcação já estava em curso. Tratou-se, deliberadamente, de uma estratégia de enfrentamento ao governo federal e aos trabalhos demarcatórios.

A produção de arroz na área cresceu, ao longo dos anos 1990 e dos primeiros anos do século XXI, beneficiada por isenção fiscal concedida pelo governo roraimense. Ou seja: estamos falando de um claro e articulado processo de criação de um fato consumado, que depois pudesse ser usado – como está sendo – contra a demarcação.

A idéia que o poder local roraimense quer apresentar à opinião pública nacional é a de que a demarcação seria uma grande injustiça com quem esteve tantos anos dedicando-se a trabalhar a terra, mas o fato é que esse trabalho iniciou-se exatamente para obstaculizar o processo de demarcação. Isso para não falar no modo como tais rizicultores, em geral, desrespeitaram a legislação ambiental, ao desviar e poluir cursos d’água, e destruir a vegetação que os ladeia.

Então, estamos diante de uma situação que é desequilibrada por definição: de um lado, sociedades instaladas na região desde que começa a haver documentação histórica, sociedades que dependem da totalidade dessas terras (e de sua integridade ambiental) para continuar-se reproduzindo física e culturalmente; de outro, meia dúzia de caras que, modernamente, resolveram montar seu negócio justamente ali, o que afeta a reprodução física e cultural daquelas sociedades.

Pensar em atender aos rizicultores é pensar em formas de transformar porções de um território indígena – que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, são de propriedade da União e de posse coletiva dos índios – em propriedade privada. Não me parece que uma tal transformação seja o melhor caminho para melhorar a vida da população rural de Roraima, 52% da qual é indígena. Eu diria que, antes de se pensar em formas de atender aos arrozeiros, mais vale voltar os olhos para o progresso da reforma agrária – e, enquanto houver um único latifúndio no país, não serão as terras indígenas que impedirão o acesso de não-índios à terra, sobretudo num estado relativamente pouco povoado como Roraima.

A integridade territorial do Brasil corre risco?

Por conta da demarcação da Raposa ou de qualquer outra terra indígena? De jeito nenhum. Essa é uma idéia que oscila entre a tolice e a paranóia, mas que atende ao propósito de desviar o foco das questões realmente pertinentes ao debate. Ela entra de contrabando nessa discussão toda. Não sei bem que papel desempenham nesse jogo os militares que a andaram trazendo de novo à tona bem agora.

O que sei é que o chefe deles, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, quando ministro da Justiça, declarou de posse dos índios e determinou à Funai a demarcação de cinco terras indígenas contíguas na chamada Cabeça do Cachorro, na fronteira do Brasil com Colômbia e Venezuela.

Parece-me que o ministro Jobim não tem nenhuma dúvida de que terras indígenas na fronteira não implicam, de forma alguma, fragilização do Estado Nacional, perspectiva de fracionamento territorial do Brasil. Por que implicariam, por sinal? Que raciocínio mirabolante sustenta essa idéia?

Primeiro, lembremos que não há absolutamente nenhuma restrição a que os militares tenham acesso ao interior das terras indígenas – presença que, por outro lado, já não é tão simples quando se trata de propriedades particulares, diga-se de passagem. Segundo, é uma grande hipocrisia usar essa suposta fragilização como argumento no caso específico da Raposa, quando, como acabamos de ver, há outras terras indígenas homologadas e regularizadas em faixa de fronteira (são dezenas: além das que estão na Cabeça do Cachorrro, mencione-se Yanomami, Vale do Javari, Oiapoque, Tumucumaque, Tikuna, Ashaninka etc.).

Terceiro, fica parecendo que as terras indígenas seriam, no fundo, terra de ninguém, quando não é absolutamente verdade. A sacanagem com os índios, nesse particular, é dupla.

Sacanagem histórica, que não leva em conta o fato de que, há cerca de um século, quando os diplomatas brasileiros tiveram de negociar a definição do trecho da fronteira onde hoje está a Raposa, a presença por lá dos Ingarikó, dos Macuxi, dos Wapixana, e as manifestações de lealdade dos seus chefes ao estado brasileiro, foram fundamentais para que a área, então chamada de “área do contestado”, pretendida pela Inglaterra, viesse finalmente a integrar o território nacional.

Joaquim Nabuco atuou e registrou essa negociação. Então: para ajudar a definir os limites do Brasil os índios servem, mas para continuar vivendo ali não??!!

O outro lado da sacanagem é prático, porque, muitas vezes, são os índios que atuam como fiscalizadores da fronteira, e comunicam fatos preocupantes às autoridades brasileiras. Isso é corriqueiro. Nos últimos tempos, deram-se a conhecer, sobretudo, denúncias indígenas sobre incursões das FARCs na Cabeça do Cachorro, e também sobre a entrada de madeireiros peruanos para cortar árvores em território brasileiro, na terra dos Ashaninka, no Acre.

Na realidade, o risco que a integridade territorial do Brasil corre, a perspectiva da tal da “internacionalização da Amazônia”, vem de outra frente, muitíssimo menos alardeada nos meios de comunicação: a enorme quantidade de terras que vêm sendo adquiridas por estrangeiros na região norte do país. O nacionalismo inteligente deveria estar com os olhos postos nesse tipo de processo, e não apontar suas armas, mais uma vez, contra os índios. Esquece-se que, para internacionalizar a Amazônia, demarcar porções dela como terra indígena pode ser muito mais complicado do que comprá-la, simplesmente.

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