Direito do vencido

Fonte: Estado de São Paulo, 20/04/2008.

'Não podemos infligir uma segunda derrota a eles'

Para Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da UFRJ, os conflitos na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, são a prova do insuperável estranhamento que ainda temos em relação aos índios

Existe risco para a soberania nacional na reserva Raposa Serra do Sol, como crê o general?

Existe, sim, uma questão de soberania do governo ao ser contestado publicamente por um membro das Forças Armadas. O general polemiza com uma decisão que, como todo mundo diz, não se discute, apenas se executa. A argumentação de que a reserva indígena represente um problema de soberania está mal colocada.

Por quê?

Há outras reservas em terras contínuas, em fronteiras. É o caso da Cabeça de Cachorro, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. E o Exército está lá, como deveria estar. A área indígena não teria como impedir a presença dos militares. O que a área indígena não permite é a exploração das terras por produtores não-índios. Dizer que o Exército não pode atuar é um sofisma alimentado por políticos e fazendeiros que agem de comum acordo, numa coalizão de interesses típica da região. Roraima é um Estado que não se mantém sozinho, ou melhor, que depende do repasse de recursos federais. Um lugar onde 90% dos políticos nem sequer são nativos. Onde o maior arrozeiro, que está à frente do movimento contra a reserva, arvora-se em defensor da região, mas veio de fora. É um gaúcho que desembarcou por lá em 1978, e não há nada de mal nisso, mas combate os índios que justamente servem de "muralha dos sertões", desde os tempos da colônia. Os índios foram decisivos para que o Brasil ganhasse essa área, numa disputa que houve no passado com a Guiana, portanto, com a Inglaterra. Dizer que viraram ameaça significa, no mínimo, cometer uma injustiça histórica. Até o mito do Macunaíma, que foi recolhido por um alemão, Koch-Grünberg, e transformado por um paulista, Mário de Andrade, foi contado por índios daquela área, os macuxis, os wapixanas. Eles são co-autores da ideologia nacional.

As manifestações do general remetem ao discurso dos militares nos anos 70, que dava ênfase à idéia de tirar os índios da tutela do Estado?

Não sei. O general diz: "Sou totalmente a favor dos índios". Imagine então o contrário, um índio indo para a televisão dizer que é totalmente a favor dos generais. Esquisito, não? Vamos pensar: o general não quer matar os índios. Quer que virem brancos? E quem é branco no Brasil? Na Amazônia todo mundo é índio. Inclusive boa parte das Forças Armadas na região é composta por gente que fala o português, mas se identifica como índio.

Esse conflito na Raposa tem por volta de 30 anos. Em 2005, quando o presidente Lula homologou as terras, selou-se o compromisso de retirar, no prazo de um ano, os produtores rurais que estavam dentro da área reservada. Parecia que todo mundo ficara de acordo. Por que a situação se deteriorou?

Há o jogo político. Disseminam-se inverdades, como a de que a área da reserva ocupa 46% de Roraima, quando apenas ocupa 7%. As terras indígenas de Roraima, somadas, dão algo como 43% do Estado. Mas a Raposa tem 7%.

Ou, 1,7 milhão de hectares.

O que não é um absurdo. As terras de índios são 43% ao todo, porém, até 30, 40 anos atrás, eram 100%. E o que acontece hoje com os 57% que não são terras de índios? São ocupados por uma população muito pequena, algo em torno de 1 milhão de pessoas. O que é isso? É latifúndio. Sabe quantos são os arrozeiros que exploram terras da reserva? Seis. Não há dúvida de que o que se quer são poucos brancos, com muita terra. Outra inverdade: as terras da reserva são dos índios. Não são. Eles não têm a propriedade, mas o usufruto. Porque as terras são da União. E a União tem o dever constitucional de zelar por elas. Já os arrozeiros querem a propriedade. As notícias que temos são as de que, desde a homologação, produtores rurais que estão fora da lei já atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, arrebentaram postos de saúde, espancaram e balearam índios. Paulo César Quartiero, o arrozeiro-mor, foi preso na semana passada por desacato à autoridade. Já está solto, mas, enfim, esse é o clima de hostilidade que reina por lá. Sinceramente, acho que o general Heleno está sendo usado por esses tubarões do agronegócio, que o envolvem numa questão de soberania totalmente artificial. O general cai nessa e vem com uma tese de balcanização, que não faz o menor sentido. Ele disse à imprensa: "O risco de áreas virem a se separar do território brasileiro, a pedido de índios e organizações estrangeiras, pode ser a mesma situação que ocorreu em Kosovo". Muito bem, o general raciocina como se nós fôssemos os sérvios? Por acaso seria o Brasil a Sérvia e os índios, minorias que precisam ser eliminadas? Não estou entendendo.

O que se questiona na Raposa é a criação de uma reserva enorme, em área contínua.

A declaração do ministro Gilmar Mendes a esse respeito é espantosa. Ele defende a demarcação de ilhas, e não de terras extensas. Em primeiro lugar, não sabia que ministro do Supremo é demarcador de terras. Demarcar é ato administrativo, cabe ao governo, não ao Judiciário. Em segundo lugar, as terras indígenas já são um arquipélago no Brasil. Acho curiosa essa expressão: demarcar em ilhas. Significa ilhar, isolar, separar. Demarcar de modo que um mesmo povo fique separado de si mesmo.

Existe o risco de reivindicação de autonomia por parte dos índios?

A terra ianomâmi está demarcada desde o governo Collor e nunca houve isso. Alguém imagina que os ianomâmis queiram reivindicar um Estado independente, justamente um povo que vive numa sociedade sem Estado? Chega a ser engraçado.

E se eles foram manipulados por interesses estrangeiros?

Empresas e cidadãos estrangeiros já são proprietários de partes consideráveis do Brasil. Detêm extensões enormes de terra e parece não haver inquietação em relação a isso. Agora, quando os índios estão em terras da União, que lhes são dadas em usufruto, daí fala-se do risco de interesses estrangeiros. A Amazônia já está internacionalizada há muito tempo, não pelos índios, mas por grandes produtores de soja ligados a grupos estrangeiros ou pelas madeireiras da Malásia. O que não falta por lá é capital estrangeiro. Por que então os índios incomodam? Porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário.

É uma questão fundiária?

É. Essa história de soberania nacional serve para produzir pânico em gente que vive longe de lá. É claro que o Exército tem de cumprir sua missão constitucional, que não é a de ficar criticando o Executivo, é proteger fronteiras, fincar postos de vigilância, levar seus batalhões, criar protocolos de convivência com as populações locais. Mas o que prevalece é o conflito fundiário e a cobiça pelas terras. Veja o que aconteceu no Estado do Mato Grosso. O que fez esse governador (Blairo Maggi), considerado um dos maiores desmatadores do mundo? Derrubou florestas para plantar soja, com o consentimento do presidente da República, diga-se de passagem. Hoje o Estado do Mato Grosso deveria se chamar Mato Fino. Virou um mar amarelo. O único ponto verde que se vê ao sobrevoá-lo é o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena. O resto é deserto vegetal. Uma vez por ano, o deserto verdeja, hora de colher soja. Depois, dá-lhe desfolhante, agrotóxico… E a soja devasta a natureza duplamente. Cada quilo produzido consome 15 litros de água. Em Roraima não se deve bater de frente com o Planalto. Representa esse Estado o senador Romero Jucá, que é pernambucano e hoje atua como líder do governo. Jucá tem interesses claros e bem definidos. É dele o projeto que regulamenta a mineração em terras indígenas. Regulamenta, não. Libera.

Ele foi presidente da Funai.

Num momento particularmente infeliz da política indigenista brasileira. Olha, não há nada de errado em ser gaúcho ou pernambucano e fazer a vida em Roraima. Mas não precisa isolar as comunidades e solapar seus direitos. Outra aspecto precisa ser lembrado: até que saísse a homologação da Raposa, o que demorou anos e anos, muito foi tirado de lá. A sede do município de Uiramutã, com 90% de índios entre seus moradores, foi transferida para fora da área. Estradas federais cortam a reserva, bem como linhas de transmissão elétrica. A rigor, já não é uma terra tão contínua.

O general diz que a política indigenista no Brasil é lamentável e caótica. Concorda com ele?

Partindo dele, a declaração não chega a ser um furo de reportagem. Creio que essa política anda melhor hoje. Em alguns aspectos tem problemas, sim, como nos programas de saúde para populações indígenas, desastrosos desde que passaram para a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Tem havido desmandos e irregularidades em toda parte. Mas do ponto de vista de relacionamento dos indígenas com os poderes da República, as coisas não estão tão mal assim.

Os índios são instrumentalizados no Brasil?

Que poderes os instrumentalizariam? A Igreja? Hoje não podemos falar só em Igreja, no singular, mas em igrejas. Porque lá estão os católicos e os evangélicos. Sei que a Igreja Católica não tem tido uma relação muito boa com o Exército e com os políticos na região da Raposa, mas isso é superável. Falta, a meu ver, um esforço da própria Igreja para melhorar a visão do problema e ganhar mais senso político. E as ONGs? Instrumentalizam? Hoje quase todo deputado no Congresso tem ONG própria. Então as relações não-governamentais ganharam uma capa sombria, mas o fato é que existe organização de todo tipo, assim como existe cidadão de todo tipo. Há bandidagem na Amazônia? Claro que há. Índio é santo? Claro que não. Mas será que aqueles carros de luxo contrabandeados pelo filho do governador de Rondônia entram pelas áreas indígenas? Tenho minhas dúvidas. Por que o Exército não impede esse contrabando, que também é uma afronta à soberania? Historicamente, seguimos o modelo de colonização segundo o qual é preciso bandido para povoar e defender certas faixas. Fronteira é feita por toda a sorte de gente. E o Estado parece ter um discurso ambíguo: protesta porque tem gente fora da lei na fronteira, mas, ao mesmo tempo, precisa dos fora-da-lei para fazer o que não é possível legalmente.

O índio é imune à bandidagem?

O índio tem a mesma galeria de problemas de qualquer ser humano. E tem, de fato, uma situação especial no Brasil. Porque este país reconhece direitos originários e isso, por si só, é um gesto histórico de proporções imensas. O País reconhece que tem uma dívida para com os índios. Apesar disso, reina uma abissal ignorância sobre a realidade desses povos de quem somos devedores.

Por quê?

O brasileiro vive um complexo que eu chamaria de a nostalgia de não ser europeu puro. Isso também se traduz no medo de ser confundido com índio. É um complexo de inferioridade. Ser "um pouco índio" até cai bem na medida em que existe uma certa simpatia com a idéia de mistura de raças, o que também não deixa de ser ambíguo. Por outro lado, o estereótipo clássico do índio, aquele sujeito de cocar e tanga, cada vez menos espelha a realidade. O caboclo da Amazônia pode ter hábitos tipicamente indígenas, mas é também o sujeito que vê televisão, fala ao telefone, como nós.

Tem-se uma percepção disseminada de que o Brasil foi habitado por índios primitivos, diferentes dos incas, maias ou astecas, cujas civilizações eram até resplandescentes.

Talvez. O México realmente produziu uma forte identificação com povos que foram esmagados pelo colonizador. Aqueles índios fizeram uma civilização mais parecida com a que havia na Europa, com seus palácios, templos, sacerdotes, um aparato que realmente não aconteceu por aqui. Agora, há muito desconhecimento dos índios brasileiros, e isso em parte é culpa nossa, antropólogos, que precisamos demonstrar melhor as soluções originais de vida que esses povos encontraram. Soluções para atingir uma forma de organização social bem-sucedida, no que diz respeito à satisfação de suas necessidades básicas. Não os vejo como índios pobres, mas originais. Considerando a história da espécie humana neste planeta, penso que não estamos em condição de dar lição a ninguém. Nós, os não-índios, tivemos uma capacidade imensa de criar excedentes e uma dificuldade quase congênita de fazer com que sejam usufruídos por todos, de maneira eqüitativa. Articulamos a desigualdade e deixamos para alguém a conta a pagar. Os índios desenvolveram um processo civilizatório mais lento, certamente, mas não deixam a conta para trás. Significa ser primitivo? Eu me pergunto: o que diabos temos a ensinar aos índios se não conseguimos resolver a dengue no Rio? O que temos a lhes mostrar se não damos jeito no trânsito da cidade de São Paulo?

Quando o europeu chegou nas Américas, a população indígena estaria na casa dos 100 milhões de pessoas. Esse dado é razoável?

Ah, esses cálculos variam muito, depende da metodologia empregada. O que se pode afirmar é que, por volta do século 15, a população indígena nas Américas era maior do que a população européia. Havia mais gente aqui do que lá. No Brasil, fala-se numa população pré-colombiana entre 4 e 5 milhões. Houve uma perda de 80% disso, desde então. Em certos momentos, houve um declínio demográfico muito profundo, tanto que, na época do Darcy Ribeiro, quando se fez uma contagem, havia algo como 200 mil índios no País. Hoje estima-se em algo em torno de 600 mil.

O crescimento tem a ver com a aplicação do quesito raça-cor, no censo IBGE, o que levaria mais gente a se declarar índio?

A autodeclaração é um fator importante, mas não o único. Hoje ocorre um número maior de nascimentos. O grande choque demográfico sobre a população indígena foi de ordem epidemiológica, com as doenças trazidas pelo colonizador. Varíola, gripe, sarampo mataram aos milhões. Até pouco tempo, ainda havia epidemias graves em certas áreas. Mas a tendência é que as populações adquiram resistência, atingindo o equilíbrio biológico. As condições sanitárias também mudaram dramaticamente no século 20. Vieram as vacinas, a penicilina, a assistência de saúde melhorou, tudo isso ajudou a recuperar a população. Já o declarar-se índio tem a ver com um fenômeno que se inicia nos anos 70, 80, que foi acentuado pela Constituição de 1988. Falo da recuperação da identidade indígena. Gente que foi "desindianizada" na marra passou a reivindicar sua origem. Em muita comunidade rural por esse Brasil as pessoas foram ensinadas, quando não obrigadas, a dizer que não eram índias. Pararam de falar a língua do grupo, tinham vergonha de seu passado, de seus costumes. Num processo em que ser índio deixa de ser estigma, e ainda confere direitos, essas pessoas que nada tinham na condição de brasileiros genéricos, buscaram o caminho da reetnização. Isso é assim mesmo. E desde quando buscar direito é tirar vantagem? A raiz do problema não está no que o índio ganha, mas em quem perde com isso. Quem perde? Eis a questão.

A desconfiança em relação a possíveis pleitos de autonomia tem a ver com o que se passa na Bolívia, país que mudou a constituição para atender aos índios?

É interessante como se tem invocado a Bolívia ultimamente. A população daquele país é quase toda indígena, enquanto no Brasil falamos de uma minoria irrisória. Zero vírgula zero alguma coisa. Lá é briga de índio. Curioso o Brasil temer virar uma Bolívia, quando uma das tensões sociais que se vê hoje por lá é justamente a presença de brasileiros. São grandes proprietários de terra.

As reivindicações dos índios na Bolívia podem ser imitadas aqui?

Mas o que os nossos índios estão pedindo? Passaporte de outro país? Dupla nacionalidade? Uma bandeira só para eles? Uma outra Constituição? Nada disso. O que eles pedem é justamente maior presença do Estado brasileiro onde vivem, para não depender da intermediação do político local. Isso os constitui como uma nação à parte, no sentido jurídico? Evito esse conceito, porque tudo é nação no Brasil.

Como assim?

Tem nação nagô, nação rubro-negra, nação corintiana. Essa também é uma herança de Portugal, que, no passado, tratava os povos como nações em documentos administrativos. A rigor, nação é uma construção subjetiva, um compartilhamento de sentimentos e cultura. É isso. Mas a turma do discurso do pânico pensa assim: primeiro o índio tinha vergonha de ser índio, depois viu que é bom ser comunidade. Daí ganhou terra, vai querer autonomia e fundar uma nação. Ora, quem diz isso nunca colocou o pé numa terra indígena.

Os afrodescendentes deveriam pleitear os mesmos direitos que os índios?

São situações diferentes. De cara, vou dizer que sou favorável às cotas para negros. Mas os afrodescendentes estão espalhados pelo Brasil e não têm a mesma dinâmica de identidade que os indígenas têm. Um caso à parte são os quilombolas, ao provarem seu vínculo territorial. Veja bem, quando falo de índio, ao longo de toda esta entrevista, falo de populações territorializadas. E, atenção, falo de direitos coletivos, não individuais. Por isso é que o caso dos quilombolas parece guardar certa correspondência. Porque são comunidades rurais descendentes de escravos, que puderam manter uma continuidade histórica e uma certa coesão do ponto de vista patrimonial e demográfico. Por isso é que a Constituição reconhece seus direitos territoriais. São direitos compensatórios, é verdade, mas representam um avanço.

Professor, quem é, afinal, índio no Brasil?

Vamos mudar a pergunta: quem está autorizado a dizer que é índio? Eu não estou. Esse é um problema fundamental: quem está autorizado a dizer quem é quem, quem é o quê. Fazer disso uma questão de peritagem me parece uma coisa monstruosa. Ninguém se inventa índio, ninguém sai por aí reivindicando uma identidade escondida, recalcada, eu diria. Vá ver de perto e descobrirá que é assim que a coisa acontece. Portanto, não é índio quem quer. Mas quem pode. Não é negro quem quer. Mas quem pode.

Como assim?

Se você souber que um grupo de hippies do Embu, em São Paulo, se diz descendente de guarani, muito bem, terão de ver se isso cola. Se colar do ponto de vista social, e não estou falando do ponto de vista jurídico, então colou. Costumo dizer que, no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. Quem não quer ser é quem ativamente se distingue. Para facilitar: digo que é índio aquele que pertence a uma comunidade que se pensa como tal. Também não estou levando em consideração o DNA. Mais recentemente, divulgou-se um estudo segundo o qual a presença do negro e do índio é muito mais alta do que se suponha na média do patrimônio genético brasileiro. Somos algo como 33% de índio, 33% de negro, 33% de branco. O que nos leva a supor que o estupro foi uma prática muito usual. É claro que os genes vieram pelas mulheres negras e índias, submetidas ao homem branco.

Diz-se que 49,5% dos 225 povos indígenas do Brasil são constituídos, cada um, de no máximo 500 indivíduos. Vem daí a idéia de que é pouca gente para muita terra?

Mas no Estado de Roraima há meia dúzia de arrozeiros fazendo esse estardalhaço todo. Meia dúzia! Também não é pouca gente? Como é que comunidades tão pequenas podem ameaçar o Brasil? Só se forem criar Estados de Mônaco. Utilizar o índio como modelo de latifúndio, como se tem feito, é um prodígio de má-fé. Índio também vende madeira? Claro que vende. Mas só ele? E os outros?

Desses 225 povos, 36 têm populações parte no Brasil, parte em países vizinhos. Não é um potencial de conflito imenso?

Se algum país está o preocupado com isso, certamente não é o Brasil. O fato de haver guaranis no Brasil e na Argentina é mais problema para o vizinho. Compare as duas populações, compare o tamanho dos países. Ter ianomâmis no Brasil e na Venezuela sempre foi complicado para o lado de lá, porque a Venezuela tem petróleo. Mas agora o Brasil também tem, nem precisamos ficar mais com complexo de inferioridade (risos). Qualquer tentativa de ver um problema aí é artificial. O que se sugere? Que se levante uma cortina de ferro para impedir que os ianomâmis passem de um lado para o outro? Por que índios podem cruzar a fronteira Brasil-Uruguai livremente, e não podem cruzar a fronteira Brasil-Venezuela? Por que temos medo do Chávez? Ter comunidades dos dois lados faz da fronteira uma zona de frouxidão. Será que é isso? A fronteira mais complicada do Brasil, hoje, é com a Colômbia, por causa das Farc, e os índios não têm nada a ver com isso. Aliás, eles atrapalham a guerrilha.

Por quê?

Porque há mais presença do Estado nas áreas onde vivem. Não vejo como os índios possam perturbar a segurança de nossas fronteiras e, lembrem-se, populações binacionais existem em várias partes do mundo. Pensemos também no bilingüismo. Até final século 18 em São Paulo falava-se a língua geral, o nhangatu, uma derivação do tupi. Foi uma língua imposta pelos missionários, até hoje ouvida em alguns locais da Amazônia. Mas ainda ouvimos cerca de 150 línguas indígenas, o que representa uma diversidade incrível. Algumas dessas línguas são tão diferentes entre si quanto o português do russo, até porque pertencem a troncos diferentes. E são faladas por indivíduos bilíngües, que adotam também o português no dia-a-dia.

Digamos que os não-índios deixem a Raposa. Os índios de lá poderão plantar e fazer lucro? Poderiam virar arrozeiros?

Sim, podem plantar e vender. Podem até virar arrozeiros. Mas terão de produzir dentro de limites muito estritos, sujeitos a leis ambientais severas, não se esqueça de que a reserva integra o Parque Nacional de Roraima. Também não podem explorar o subsolo, a não ser o que há no solo de superfície. Mas francamente acho que a população indígena jamais entrará de cabeça no modo de produção do agronegócio, que eu chamo de modelo gaúcho, porque isso simplesmente não bate com seu modelo de civilização. Por isso insisto tanto em dizer que estas não são terras de índio, mas terras de usufruto dos índios. Nunca houve polêmica sobre a definição de reserva, porque se sabe que o domínio das terras é da União. Isso é inclusive a maior garantia para os índios. No dia em que não houver mais, eles serão invadidos imediatamente. Inclusive pelo Brasil, inclusive pelos arrozeiros. Só que no sentido técnico essa invasão já houve. Os índios não têm soberania porque já a perderam e se renderam. Suas populações foram invadidas, exterminadas, derrotadas. O que eles querem é que os direitos de vencidos sejam respeitados. Não se pode infligir uma segunda derrota a eles. Isso é contra as leis, contra tudo.

Ou seja, o que parece privilégio é direito de vencido?

Inimigos muito mais graves foram mais bem tratados, quando vencidos. Veja o que aconteceu com os alemães depois do final da guerra. Com todos os tribunais e punições que se seguiram, o país foi reconstruído das cinzas. E o que dizer da guerra implacável contra os índios? Foram exterminados, tratados como bichos, escorraçados por um discurso de língua de cobra em que metade diz que vai defender a pátria e metade vai colocar o dinheiro no bolso. Não, os índios não estão em guerra com o Brasil. Os da Raposa brigam com meia dúzia de arrozeiros que, por sua vez, não representam o Estado brasileiro.Uma coisa me parece estranha: encarregado pela ONU, o Exército brasileiro lidera uma missão militar no Haiti, mas não consegue tirar de uma reserva indígena seis fazendeiros?

A Constituição brasileira está fazendo 20 anos. O que representou para os índios?

Foi um avanço, mas ainda falta regulamentar muita coisa. É impressionante como a Constituição tem inimigos. Todo mundo quer tirar dela uma lasca, com cinzel e tudo. O artigo referente aos direitos indígenas é um dos mais visados. Há pelo menos 70 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, nesse campo específico, e todos pretendem diminuir as garantias do direito às terras. Mais de 30 dessas proposições querem alterar os procedimentos de demarcação. Buscam reverter processos administrativos. Os oito deputados federais do Estado de Roraima apresentaram projetos para suspender a portaria que criou a Raposa Serra do Sol. Toda bancada é contra a reserva. O projeto de regulamentação para mineração, do Jucá, é primor de como se pode erodir direitos, comendo o pirão pelas beiradas. Em compensação, o projeto de lei que substitui o Estatuto do Índio está há 14 anos parado no Congresso. O que existe, claramente, é a tendência de redução de proteção jurídica aos povos indígenas. E, conseqüentemente, de redução da presença e da soberania da União nessas áreas.

O senhor desenvolveu uma teoria conhecida no mundo todo como "perspectivismo amazônico". É vista como uma grande contribuição à antropologia.

Não sou eu quem vai dizer isso…

Mas parece que o senhor conseguiu inverter o ponto focal, digamos assim, dos estudos indígenas. É isso mesmo?

Fiz um trabalho teórico que não é só meu, é dos meus alunos também. Faço uma experiência filosófica que no fundo é muito simples. Temos uma antropologia ocidental, montada para estudar os outros povos, certo? O que aconteceria se vocês imaginassem uma antropologia feita do lado de lá, ou seja, do ponto de vista indígena? Foi isso que me levou a entender que, para os índios, a natureza é contínua, e o espírito, descontínuo. Os índios entendem assim: há uma natureza comum e o que varia é a cultura, a maneira como me apresento. Daí a preocupação de se distinguir pela caracterização dos corpos. E as onças, como se vêem? Como gente. Só que elas não nos vêem como gente, mas como porcos selvagens. Por isso nos comem. Enfim, para os indígenas, cada ser é um centro de perspectivas no universo. Se eles fizessem ciência, certamente seria muito diferente da nossa, que de tão inquestionável nos direciona a Deus, ao absoluto, a algo que não podemos refutar, só temos de obedecer. Os índios não acreditam na idéia de crer, são indiferentes a ela, por isso nos parecem tão pouco confiáveis (risos). No sermão do Espírito Santo, padre Antonio Vieira diz que seria mais fácil evangelizar um chinês ou um indiano do que o selvagem brasileiro. Os primeiros seriam como estátuas de mármore, que dão trabalho para fazer, mas a forma não muda. O índio brasileiro, em compensação, seria como a estátua de murta. Quando você pensa ela está pronta, lá vem um galho novo revirando a forma.

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