Décadas de espanto e uma apologia democrática

Livro de autoria de de Wanderley Guilherme dos Santos.

Fonte: Óleo do Diabo.

por Miguel do Rosário

Uma longa crônica self-service

Segunda-feira, Abril 14, 2008

A leitura de "Décadas de Espanto e Uma Apologia Democrática", de Wanderley Guilherme dos Santos, tem sido uma magnífica aula de história e política. Santos fala sobre as origens das democracias modernas no mundo, compara-as entre si e com o Brasil, analisa os prós e os contras de cada uma, sempre deixando bem claro a sua opinião. Acrescente-se que o texto é redigido com prosa agradável, literária, uma abordagem elástica dos temas, e uma rebeldia alegre, com escapadelas do tema central para viajar em contextualizações que ajudam a compreender o todo.

É saudável observar como Santos desnuda a evolução problemática das nações mais tradicionais e "civilizadas", mostrando que, em termos de legislação eleitoral, muitas são mais atrasados que o Brasil, embora convivam harmoniosamente com seus problemas. Afinal, diz Santos, é preciso que as sociedades compreendam "o espírito" das leis, o que significa agir com justiça em linha com determinadas convicções, sem que seja necessário ao Estado usar de violência institucional.

Só quero deixar claro uma coisa. Os comentários que teço neste post são uma interpretação livre da minha leitura da obra citada.

Santos defende, com um entusiasmo discreto mas inegável, a democracia brasileira e o voto proporcional, e critica ferozmente os que procuram introduzir o voto distrital, e outras mudanças esdrúxulas na legislação eleitoral. Ele apresenta suas razões, mostrando que o voto proporcional é mais democrático, porque protege as minorias contra a tirania da maioria. Também aborda a questão dos partidos, observando que a legislação deve permitir a candidatura avulsa, sem partido, ou evitar que os partidos se oligarquizem, ou seja, se tornem propriedade de suas lideranças. O que me fez lembrar de certas lideranças partidárias escolhendo o candidato à República num restaurante cinco estrelas de São Paulo.

O livro foi escrito em 1998, e Santos já acusava a mídia de patrocinar campanhas que difamavam as instituições políticas. Difama e depois faz pesquisa junto a opinião pública para saber a opinião que têm dos políticos, os quais se tornaram "vilões" apenas por serem políticos. A jovem e ainda insegura democracia brasileira enfrentou, durante todos os anos 80 e 90, e enfrenta até hoje, uma incessante campanha da imprensa contra todos os seus principais pilares, Legislativo, Judiciário e Executivo. Santos analisa e vê aí uma revolta oligárquica contra os avanços democráticos no país.

O último livro político de Santos chama-se Paradoxo de Rousseau, e aborda questões mais recentes. Está esgotado em quase todas as livrarias e sites de compra. Aí vai um pito à editora. Tentei encontrá-lo em diversas partes e não o encontrei.

Ainda não terminei de ler o livro de que falo neste post (Décadas de Espanto). Volto a ele mais tarde. Acho que Santos é um autor que merece ser estudado com muita atenção por todo cidadão interessado em entender os complicados processos políticos brasileiros, desde seus primórdios. Assim os debates políticos poderiam ganhar qualidade e os segmentos avançados da opinião pública se tornariam mais exigentes em relação à mídia.

Santos denuncia ainda uma série de críticas econômicas e políticas da mídia à democracia brasileira. Por exemplo, há muito tempo (o livro é de 1998) que a mídia insiste em comparar o crescimento do PIB brasileiro à de seus vizinhos pequenos. Santos lembra que, em 1946, para pegar um ano aleatoriamente, Honduras cresceu 6,9% enquanto o Brasil cresceu somente 1%. O PIB per capita no Brasil era de US$ 195, contra US$ 205 em Honduras. Pois bem, em 1993, o PIB per capita no Brasil chegou a US$ 2.930, seis vezes acima do PIB hondurenho. Santos usa outros exemplos similares para mostrar como a mídia manipula dados econômicos para pressionar por reformas nem sempre prioritárias, nem sempre necessárias e que, em muitos casos, implicariam em retrocesso democrático.

O Brasil precisa reler sua história, precisa abordar sob outros ângulos a sua experiência democrática. Por exemplo, na República Velha, a média dos eleitores oscilou em torno de 2,5% da população brasileira. Em 1945, já correspondia a 16%. Em 1994 chegou a 65,4% da população.

Ou seja, a nossa democracia é jovem. Muito jovem. Isso não significa que caminhe seguramente na direção do Paraíso. Nada é tão fácil. É preciso que a população fique atenta para que o sistema eleitoral e as instâncias de poder realmente correspondam a seus anseios.

Em 1998, Santos denunciava o financiamento espúrio das campanhas eleitorais, que seria o equivalente à compra de votos do século passado. Esse fato traria distorções profundas ao processo eleitoral, porque implica em vantagens para candidatos e partidos que usufruem de recursos de origem duvidosa. Entretanto, a constatação do problema não diminui a confiança de Santos na democracia, que possui instrumentos para coibi-lo ou reduzi-lo a níveis mínimos.

Jovem democracia

Quinta-feira, Abril 17, 2008

Uma das coisas que mais me chamou a atenção no livro "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática", de Wanderley Guilherme dos Santos, são os dados que ele compilou sobre a participação do eleitorado sobre a população total brasileira.

Segundo Santos, com base em números do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o eleitorado corrrespondia, em 1945, a 12,7% da população da região Norte, 11,6% do Nordeste, 19,6% do Sul e 11,0% do Centro-Oeste. Esses números irão crescer bastante até 1962, último ano de eleições depois do período de trevas democráticas que irão se abater sobre o país, mas ainda continuarão baixos: 22,3% para o Norte, 20% para o Nordeste, 28,2% para o Sudeste, 26,3% para o Sul e 25% para o Centro Oeste. Só em 1994, esses números irão atingir patamares mais abrangentes, em torno de 60 a 65% da população, afetando severamente o sistema oligárquico, que havia sobrevivido e se adaptado à democracia dos anos 40 a 60, e depois se fortalecido mais ainda durante a era militar, regime que apoiou e ao qual aderiu entusiasticamente.

Santos observa que apenas durante a última década (anos 90), a democracia eleitoral adquiriu "efetiva substância social". Pergunta-se o cientista: "que democracia seria aquela cujos postos de mando dependiam de 11,6% da população do Nordeste (sem mencionar voto de cabresto, fraude e coação), comparada com a desse mesmo Nordeste, em 1994, com 59,8% de sua população apta para votar?"

Enfim, o que se depreende do texto de Santos é que a própria democracia brasileira se "democratizou" recentemente, de maneira que a mudança no perfil de parlamentares, governantes, do próprio presidente, reflete essa extraordinária inclusão eleitoral da maioria do povo.

Outro conceito interessante que aprendi no livro de Santos foi sobre a hipocrisia dos grupos políticos, que aceitam participar do jogo democrático sem incorporar verdadeiramente os valores implicadosr. Essa falsidade patenteia-se na desconfiança em relação a seus adversários, a quem acusam permanentemente de possuírem "uma agenda oculta".

Lembre-se que o livro foi publicado em 1998. As análises de Santos, contudo, extravasam o circunstancial e tocam no cerne dos dilemas e deficiências políticas ainda muito atuais. Esse conceito da "agenda oculta", por exemplo, está presente na atual desconfiança, que hoje já atingiu nível de patologia, constante, obsessiva, de grupos políticos, aí incluídos setores midiáticos, contra as forças democráticas de esquerda, as quais estariam sempre, na visão paranóica desses grupos, em vias de promover algum golpe institucional contra o sistema. A quantidade de editoriais e artigos sombrios, Brasil à fora, acusando o governo de planejar um "golpe institucional", através de mudanças legislativas que permitiriam um "terceiro mandato", mesmo após o presidente e seu partido terem, em todas as oportunidades que foram questionados, negado peremptoriamente qualquer intenção nesse sentido, é prova do que estamos falando. O interessante é que a desconfiança parte justamente daqueles grupos que apoiaram uma mudança eleitoral que beneficiou as forças no poder, à época, permitindo que elas usassem a máquina pública para se reelegerem - caso de Fernando Henrique Cardoso. As críticas contra mudanças eleitorais e terceiro mandato, aliás, estão todas respingando nesse caso. O futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral, questionado sob eventuais mudança eleitoral com vistas permitir um terceiro mandato para presidente, posicinou-se frontalmente contra, insinuando que poderia acarretar em ação de inconstitucionalidade. Ayres Britto lembrou que o próprio presidente, "inteligente e democrata que é e sempre foi", tem dito que o "terceiro mandato é inconcebível". E alfineta a mudança realizada por FHC para aprovar a sua própria reeleição: "À luz da Constituição, já foi difícil de assimilar a tese da reeleição". Ou seja, a imprensa quis mirar no pé de Lula e acabou acertando no braço de FHC.

Hoje, no Globo, por exemplo, o colunista Demétrio Magnoli, falseia argumentos do livro de Eugenio Bucci, para insinuar que a TV Pública seria uma intervenção stalinista do governo federal sobre a realidade midiática. Falseia porque o livro de Bucci, "Em Brasília, 19 horas", segundo relatos de quem o leu, traz um elogio a Lula pelo apoio dado à linha independente defendida pelo ex-presidente da Rádiobrás. A mídia apenas destacou trechos em que Bucci cita pressões do Planalto contra a estatal, omitindo que, após as pressões, a sua visão independentista e crítica prevaleceu.

Magnoli, por fim, mente descaradamente nesse trecho: "A hostilidade à imprensa se manifesta como um programa de multiplicação dos meios de comunicação sob gestão governamental. Em 2003, Bucci ousou propor o fim da obrigatoriedade da transmissão da Voz do Brasil. No lugar disso, mais tarde, o governo decidiu implantar a TV Brasil." Ora, Bucci foi justamente o idealizador da TV Brasil! E sua intenção de acabar com a Voz do Brasil não originava-se de uma visão privatista da comunicação, e sim da idéia, muito lógica e simples, de que o modelo da Voz do Brasil, com seu formato convencional, conservador, autoritário, seria anacrônico. Concordo com Bucci. Quando chega a Hora do Brasil, a maioria das pessoas simplesmente desliga o rádio. Gosto de ouvir notícias pelo rádio, mas acho o formato da Voz do Brasil atrasado. Sente-se voltar no tempo, a décadas passadas - um efeito, aliás, que tem até seu lado positivo e explica, seguramente, o apego que setores da sociedade e do governo ainda mantém ao programa. Aposto que milhões de aposentados gostam de ouvir a Voz do Brasil. Mas que é atrasado e anacrônico, é quase um consenso.

Magnoli vai mais longe e traça um cenário ameaçador, citando o Projeto de Lei 29, o qual seria, segundo ele, um "acordo dos políticos contra os cidadãos"! Ora, Magnoli expressa uma visão oligárquica, anti-democrática, porque não aceita que os políticos é que são, eles sim, os representantes do povo e da democracia. Se a lei foi aprovada no Congresso Nacional, então ela representa os anseios do povo. Essa visão oligárquica ainda não assimilou essa realidade. E aí cotejamos com a análise de Santos, sobre o fato de que, apenas recentemente, a maioria da população brasileira está realmente participando das eleições. É um fato. O Congresso Nacional, goste-se ou não, errando ou acertando, reflete com cada vez mais fidelidade e justiça, os anseios do povo brasileiro, aí incluindo empresários, centrais sindicais, latifundiários, índios, classe média, etc. Pode-se e deve-se criticar o Congresso Nacional. Mas a crítica de Magnoli, que repete um padrão de toda a mídia corporativa, é à própria legitimidade democrática do Congresso Nacional.

Santos, em outro trecho do livro, observa que a imprensa faz uma campanha sistemática contra o Congresso Nacional, e depois patrocina uma pesquisa de opinião sobre o Congresso. O resultado, naturalmente, é desastroso, e serve para fortalecer a campanha, num ciclo vicioso que visa desmerecer, moral e eticamente, a força do Legislativo. Quando há um Executivo dominado por forças políticas em linha com a mídia, o mesmo ficaria excessivamente fortalecido. Quando o Executivo, como é o caso agora, não é de agrado dos editorialistas, então temos um cenário de crise política eterna, com Executivo e Legislativo no mesmo saco, compondo a mesma "corja", transmitindo ao público uma enorme sensação de insegurança, traduzida mais tarde, pelos mesmos colunistas, como um "grande desencanto com a política".

Apesar de constatações tão negativas, a leitura do livro de Santos sinaliza perspectivas boas para a democracia brasileira. O otimismo de Santos é saudável, porque não é ingênuo ou ufanista. É um otimismo discreto, de cientista cético, que não se ilude com nenhum futuro "feliz". Não é isso. A felicidade é subjetiva e relativa. Eventualmente, pode-se ser mais feliz sob uma tirania "do bem", estável e segura, do que sob uma democracia, que aceita e pressupõe constante conflito entre as forças políticas divergentes. O que se depreende da análise de Santos é que a luta continua, mas que, agora, pela primeira vez, o povo está armado. Isso não é nenhuma festa. Para uma elite míope, isso é negativo, porque ela não compreende que, em face desse novo poder a ele concedido, o povo tem condições de patrocinar um crescimento econômico inédito no país, beneficiando todos os agentes econômicos, elite inclusa. Não é uma festa porque o povo, ou a maioria, não é uma instituição infalível. O povo erra. O povo vota em Lula, por exemplo. Duas vezes, e confere-lhe popularidade jamais alcançada por outro governante. Mas o poder, numa democracia, não emana dos anseios éticos de colunistas de jornal. Segundo o Artigo Primeiro, Parágrafo Único, do Título I da Constituição Brasileira, que trata Dos Princípios Fundamentais, "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição". O povo está armado e, lembrando a canção, "a arma apontada para a cara do sossego". Do sossego bovino, autoritário, estúpido, dos estranhos homens que dirigem a reacionária mídia latino-americana.

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